Reforma tributária: os ‘pecados’ do imposto do ‘pecado’

A reforma tributária introduziu várias novas figuras no sistema tributário, com destaques para o IBS e a CBS, com novos princípios explícitos, como a neutralidade. Outra figura, entretanto, tem chamado muita atenção do ambiente jurídico nacional: o chamado Imposto Seletivo (IS), comumente comparado ao “imposto do pecado” ou, como se verifica na doutrina internacional, o “sin tax“.

A Emenda Constitucional nº 132, de 2023, passou a prever o “IS” para desestimular o consumo de produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, ou seja, com função notadamente regulatória ou extrafiscal. De competência da União, o novo imposto foi instituído pela Lei Complementar nº 214, de 2025, com a possibilidade de cobrança a partir de 2027, atribuindo-se ao legislador ordinário definir suas características finais.

Criado sob o discurso de controlar externalidades negativas, próprias dos alimentos ultraprocessados [1], do álcool, do tabaco e de veículos danosos ao meio ambiente, o novo imposto foi impulsionado por esse possível caráter indutor. Afinal, sabe-se que a intersecção entre tributação e regulação econômica é funcional em dados momentos para se corrigir certas distorções do ambiente social.

Incoerência entre discussões e prática

Entretanto, infere-se uma grande incoerência entre o IS discutido por anos na literatura e o imposto que passou a integrar o complexo sistema tributário brasileiro. Uma coisa é o uso de normas tributárias indutoras [2] para a correção de falhas de mercados por mecanismos de estímulo ou desestímulo. Outra coisa é, sob esse discurso, criar-se uma nova figura tributária que acabará por onerar ainda mais o consumo, acrescentando-se ao “IVA Dual” uma nova imposição fiscal.

A lógica dos “excise taxes“, sob denominações como “sin taxes”, “sugar taxes”, ou “health taxes”, pode não ser coerente com o sistema tributário brasileiro. Primeiramente, porque o tributo não é sanção por ato ilícito no Brasil, conforme estatui o artigo 3º do CTN. Nesse mesmo sentido, a proibição de certos comportamentos não pode se dar por meio do tributo. A utilização de estímulos e desestímulos, por outro lado, deve ser ponderada com o regime próprio das normas indutoras, que respeitam os limites do tributo, seus princípios e parâmetros constitucionais [3].

Função arrecadatória no lugar de política

Logo, ao assumir possível função arrecadatória, o “IS” pode se afastar de sua motivação política, podendo se tornar um novo imposto geral do consumo. Afinal, não é exclusivo de classes economicamente mais sólidas o consumo de alimentos ultraprocessados, de álcool e tabaco. Essa constatação atrai, portanto, a preocupação com a possível regressividade do novo imposto, porquanto aumentar-se-á o custo dos preços de produtos consumidos por toda a população. E isso porque o “IS” foi desenhado como um tributo regulatório, mas a sua estrutura fiscal, paradoxalmente, pode visar à arrecadação, com discursos contraditórios.

Acabará, nessa hipótese, violando a igualdade e a capacidade contributiva. O aumento da tributação para os contribuintes com menor capacidade criará também novas distorções no processo econômico. Ademais, o sistema tributário já possui mecanismos para fins regulatórios. E, muitas vezes, eles não resolvem os temas per se, dependendo muito mais de regulações diretas. Empiricamente, o controle de distorções econômicas pode ser combatido pela tributação, de modo indireto, mas muitas vezes a direção é que resolverá o status quo ante.

Semelhança com o IPI

Por outro lado, outra incoerência se apresenta: enquanto os “six taxes” em todo o mundo optam por alíquotas ad valorem ou ad rem, o “IS” parece adotar as duas simultaneamente. Alíquotas dos dois tipos, portanto, incidirão sobre o mesmo produto, como o cigarro.

Parece, pois, que o “IS” é um retrofit do IPI, por razões federativas. Isso mesmo: a implementação do imposto seletivo parece ter sido um acordo entre os entes federados para garantir repartição de receitas. Novamente, uma razão financeira afeta a técnica da tributação. Visou-se a evitar perda de incentivos fiscais e garantir equivalência econômica aos benefícios atualmente vigentes [4], ainda que o novo imposto tenha base semelhante ao IPI.

Por tal razão, concorda-se com o professor André Folloni [5], para quem o “IS” deve ser controlado a partir de critérios objetivos de validade:

  1. incidência pontual e seletiva;
  2. prejuízo grave e especial;
  3. caráter prejudicial notório e incontroverso;
  4. eficácia de sua incidência; e
  5. reavaliação periódica.

Esses mecanismos, certamente, podem tornar o imposto menos injusto e menos desigual.

De modo objetivo, são vários e objetivos os “pecados” do “imposto do pecado”:

  1. possível desnaturação da função regulatória ou extrafiscal;
  2. quebra da tese do IVA Dual, podendo surgir mais um imposto sobre o consumo, que, paradoxalmente, se afasta dos princípios explícitos do IBS e da CBS, como a neutralidade fiscal;
  3. nesse contexto, poderá ser regressivo, onerando o consumo de produtos consumidos por contribuintes com menor capacidade contributiva, o que seria incompatível com a teoria da igualdade.

Os critérios sugeridos pelo professor André Folloni [6] acabam sendo um método de controle para evitar maior injustiça e incoerência do sistema tributário. O tributo não pode piorar o sistema que pretende melhorar [7].

Fonte: Conjur

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