PEC 66 vai resolver os precatórios nos braços de Morfeu ou de Baco?

Proposta muda tratamento dos precatórios, afeta novo arcabouço fiscal e traz impactos para dívida pública

Às vésperas do recesso, o Congresso praticamente concluiu a votação da PEC 66/2023. A proposta, que originalmente renegociava dívidas previdenciárias dos municípios, foi ampliada para incluir alívio no pagamento de sentenças judiciais. O benefício adicional, que se dá pela redução do percentual de receita destinado a precatórios, foi estendido sem exigência de contrapartidas de ajustes fiscais, induzindo ao acúmulo destes passivos.

Também foi autorizada a criação de linhas de crédito pela União para que os entes financiem os precatórios. Se precatórios são passivos não reconhecidos nas estatísticas da Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG), a dívida bancária o é. De todo modo, o crescimento dos passivos será percebido nas estatísticas ou nos balanços, por isso seria importante os governos regionais saírem com finanças mais robustas deste período de alívio.

Apesar disso, dificilmente haverá reversão da tendência de aprovação da PEC no Senado. Prefeitos e governadores têm muita influência no Congresso por serem atores centrais nas próximas eleições — como candidatos ou cabos eleitorais — e entrar no ano eleitoral com o caixa aliviado ajuda a exercer esse papel. Apenas como ilustração, só a cidade de São Paulo pode liberar de R$ 1,5 bilhão a R$ 2 bilhões com o pagamento menor dessas dívidas.

Não bastasse mais uma dose aos municípios, já embriagados de regimes especiais e renegociações de dívidas previdenciárias e judiciais, o Congresso ampliou o brinde dos precatórios também aos estados, que vêm sendo beneficiados por alívios nas dívidas com a União e mais espaço para contratar crédito. Diante dessa festa, o governo federal também estendeu sua taça. E este será o ponto central aqui.

A União não tem a flexibilidade de estados e municípios no pagamento de sentenças, o que reforça a segurança jurídica do país. Os pagamentos de sentenças (requisições de pequeno valor e precatórios) ganharam destaque desde 2021, quando seu crescimento passou a conflitar com o teto de gastos. De 2010 a 2014, representavam em média 0,33% do PIB; de 2015 a 2019, 0,50%; e, entre 2020 e 2024, 0,77%. Em 2025 este gasto pode superar 0,85% do PIB, quase o triplo do início da década passada.

Com o agravamento do conflito entre sentenças, demais despesas e regras fiscais, surgem “soluções” — geralmente insatisfatórias. O debate esteve adormecido nos últimos 18 meses graças ao waiver concedido pelo STF, que permitiu a execução de parte dessas despesas fora do limite de gastos e da meta de primário. Com o fim da excepcionalidade previsto para 2027, soluções antigas ressurgiram — como reclassificar despesas para alterar artificialmente sua natureza.

Após a decisão do STF em 2023, fontes oficiais chegaram a fazer projeções otimistas de que os gastos com sentenças poderiam cair e, milagrosamente, voltar a caber no limite. Mas o fim do waiver sempre foi visto por analistas como a “pá de cal” do novo arcabouço fiscal (LC 200/2023), pois seria inevitável revisar a lei ou a regra que incorporava todos os precatórios ao teto.

Com o baile da PEC 66 em curso, a União buscou um “par” no Congresso para tratar do fim do waiver. A solução escolhida foi: excluir permanentemente as sentenças judiciais do limite de gastos a partir de 2026; incorporar ao menos 10% delas à meta de primário a partir de 2027; e recalcular o limite de 2026 com base no teto de 2025, desconsiderando o sublimite das sentenças da PEC dos precatórios.

Vale examinar cada aspecto de mais esta mudança no arcabouço fiscal, já antecipada por parte do mercado. Outras benesses da PEC, como a desvinculação do superávit financeiro de fundos, usada antes para reforçar a gestão da dívida, e agora voltada ao arsenal parafiscal, ficarão para outro momento.

Regras fiscais de limite de despesas são feitas para gerar trade-offs entre despesas, como os gerados pela demografia. Excluir gastos do limite é a forma mais clara de fugir desses conflitos. A favor da exclusão dos precatórios, alega-se que decorrem de decisão de última instância de um poder autônomo, esgotadas as alternativas do Executivo.

Ainda assim, soluções mais rígidas seriam possíveis — como recalcular os limites desde 2023 considerando a totalidade das sentenças, e promover reformas para acomodar o crescimento no limite de gasto. Diante da alternativa debatida — reclassificar encargos como despesas financeiras para fugir da meta — a solução adotada parece um mal menor.

Já a forma de incorporar esses gastos à meta de primário a partir de 2027 enfraquece essa regra fiscal como indicador da solvência fiscal. O cumprimento formal da meta, mesmo que ela seja elevada ao longo do tempo, perde valor quando bilhões em despesas são excluídos de seu cálculo. Uma meta de superávit primário na qual bandas de flutuação e exclusões viabilizam o seu cumprimento, mesmo gerando déficits expressivos, não dá a contribuição necessária para colocar a dívida em trajetória sustentável — o objetivo de uma boa regra fiscal.

Pior ainda, a redação atual da PEC permite retrocessos. O §19 do art. 165 determina que, em 2027, “no mínimo, 10%” das sentenças sejam incluídas na meta. Porém, pelo waiver do STF, entre 2025 e 2026 este percentual seria entre 45% e 50% do total. Para preservar a credibilidade da meta, seria essencial deixar claro que os 10% serão adicionais ao que já era considerado para a meta em 2026.

O último ponto, o recálculo do limite de gastos em 2026, é o que mais explicitamente compromete a credibilidade do arcabouço. Desde a EC 95/2016, sempre que se quis manter a credibilidade da regra, ao incluir ou excluir uma despesa do teto, este foi recalculado desde a data-base. Isso ocorreu recentemente, por exemplo, quando o Judiciário retirou do seu limite despesas financiadas com fontes próprias.

Já o recálculo da PEC 66 soma à base permanente créditos que a LC 200/2023 veda incorporar. É o caso da diferença entre a inflação usada para corrigir o teto e a que corrige despesas previdenciárias. Os R$ 12,4 bi a mais em 2025 virarão R$ 13,4 bi em 2026, minando a função do limite em gerar trade-offs entre políticas públicas. Se a cada nova despesa obrigatória o teto é ampliado, ele perde sua razão de ser.

Não se espera que mais um regime especial para dívidas de entes subnacionais encerre nossa tradição de renegociar passivos ao primeiro aperto. Mas e o novo arcabouço? Com a exclusão dos precatórios da meta e o aumento do “pé-direito” do teto, ele ganha vida longa ou apenas sobrevida? A segunda parece mais provável. A PEC retira a pressão do ano eleitoral e amplia, sob nova roupagem, o alívio já dado pelo STF.

Segundo o último Relatório de Projeções Fiscais do Tesouro, com o fim do waiver, as despesas discricionárias de 2027 seriam de 1% do PIB. Já o PLDO 2026 estimava 0,8%. Fontes oficiais afirmam que o espaço aberto pelo recálculo do teto será ocupado por mais gasto com salário-maternidade, também imposto pelo STF.

Assim, o ganho da PEC seria colocar as discricionárias para algo em torno de 1,2% a 1,4% do PIB, ainda abaixo da média do atual mandato (1,6%) e do mínimo histórico de 1,4% registrado em 2021 — mesmo patamar projetado para 2026 e que levou a revisão via PEC 66/2023.

Assim, se em 2027 um novo governo quiser mudar o rumo da dívida pública, precisará enfrentar a baixa ambição do arcabouço. A regra demanda carga tributária crescente para obter melhora lenta demais do primário, insuficiente para garantir conforto na sustentabilidade da dívida.

Por outro lado, se o novo mandato seguir a lógica vigente desde 2023 — de preservar o tamanho do Estado e suas despesas —, a revisão também será inevitável. Mesmo com aumento de receita, o espaço fiscal será incompatível com o nível mínimo de discricionárias tolerado por esta gestão. Sem nova revisão, devemos ver novas elevações e exceções ao limite que desacreditam a regra.

Em resumo, a PEC serve mais uma rodada a estados e municípios já entorpecidos por sucessivas renegociações, chama a União para o brinde… E já marca novo happy hour para a próxima legislatura.logo-jota

Fonte: Jota

Ainda com dúvidas? Fale agora com um especialista diretamente no WhatsApp: