Incidência de PIS/Cofins sobre créditos de descarbonização

Trataremos, neste artigo, da natureza jurídica dos créditos de descarbonização (CBIOs) e de sua tributação pelas contribuições do PIS/Cofins.

A preocupação com as mudanças climáticas passou a ser normatizada no Brasil a partir da Lei 12.187/2009, cujo artigo 12 prevê metas de descarbonização, bem como o compromisso pela adoção de medidas para mitigar as emissões de gases de efeito estufa.

Nesse contexto, a Lei 13.576/2017 disciplinou a Política Nacional de Biocombustíveis (Renovabio), que prevê os créditos de descarbonização (CBIOs), emitidos em quantidade proporcional ao biocombustível produzido, importado ou comercializado. Cada CBIO equivale à remoção de uma tonelada de CO2 da atmosfera, permitindo ao seu detentor ou adquirente a compensação das emissões na mesma dimensão, para efeito de atingimento das metas de redução de carbono aplicadas aos distribuidores de combustíveis.

Para identificar o regime tributário dos CBIOs, temos que investigar a sua natureza jurídica [1].

Há muita controvérsia sobre a questão. Alguns tratam os CBIOs commodities ambientais, outros como títulos de crédito, valores mobiliários ou até como serviços [2].

O desafio reside em que não se encontra para os CBIOs uma definição ostensiva no direito positivo. A determinação da natureza jurídica dos CBIOs exige, portanto, confrontar suas características com aquelas dos institutos existentes em nosso ordenamento jurídico para que, então, se efetue uma proposta de subsunção baseada em tais evidências. É o que nos dispomos a empreender no presente artigo.

As commodities e os CBIOs se diferenciam claramente porque aquelas têm a natureza de bem corpóreo, mercadoria fungível, ao passo que os CBIOs se caracterizam exatamente pela sua natureza incorpórea.

Títulos de crédito

Os títulos de crédito tampouco se confundem os CBIOs, eis que os primeiros encerram uma relação obrigacional que une credor e devedor em torno de uma prestação de cunho patrimonial. Dos CBIOs, por sua vez, não decorre crédito exigível, de modo que sua serventia se limita ao cumprimento das exigências de conformidade no atingimento das metas de descarbonização impostas ao mercado distribuidor de combustíveis, nos termos do artigo 5º, V da Lei nº 13.576/2017.

Mais complexa é a diferenciação entre os CBIOs e o conceito de valor mobiliário.

O mercado de valores mobiliários se encontra regido pela Lei nº 6.385/1976, em cujo artigo 2º estão arrolados, de forma exaustiva, os ativos que podem envergar tal natureza na ordem jurídica brasileira. Das nove hipóteses que contemplam seus incisos, as únicas que de alguma forma se aproximam da tipologia dos CBIOs são as duas últimas: contratos derivativos e títulos ou contratos de investimento coletivo.

Derivativos, como a etimologia denuncia, são contratos cujo valor é derivado de um outro ativo, denominado ativo subjacente, a exemplo de petróleo, soja ou dólar. No caso dos CBIOs, não há ativo subjacente, de modo que o valor objeto da transação decorre dos próprios CBIOs como ativos autônomos. [3]

Títulos ou contratos de investimento coletivo, por sua vez, são vinculados a empreendimentos, de modo que o risco e a remuneração estão atrelados às perspectivas de sucesso decorrentes do esforço do empreendedor.

Os CBIOs, contrariamente, não derivam seu valor das perspectivas de sucesso individual do emissor, senão das exigências regulatórias relativas às metas de descarbonização do mercado de distribuição de combustíveis, para cujo cumprimento os CBIOs podem ser utilizados. Como se vê, os CBIOs tampouco se subsomem à figura dos valores mobiliários.

Afastada a classificação dos CBIOs como commodities, títulos de crédito e valores mobiliários, cabe-nos investigar se seriam ativos financeiros.

CBIOs seriam ativo financeiro?

A subsunção dos CBIOs ao conceito de ativo financeiro não é, contudo, trivial e a análise da norma contábil já o demonstra. A definição de ativo financeiro do CPC 39 limita essa categoria a recursos de natureza privada ou contratual, cuja liquidez esteja à disposição do próprio titular, ou seja exigível de uma outra entidade privada. A Orientação Técnica OCPC 10, por fim, analisando especificamente o tema dos créditos de descarbonização, confirma que, sob a norma contábil, “não se encontram atendidos os critérios para sua classificação como ativo financeiro”.

Muito embora os CBIOs não possam ser considerados ativos financeiros para a contabilidade, para o direito há elementos relevantes que indicam que nossa conclusão pode ser diferente.

Primeiro, os CBIOs são, nos termos do artigo 5º, VIII c/c artigo 15 da Lei nº 13.576/2017, escriturados por bancos ou instituições financeiras autorizadas a operar pelo Banco Central, que os negociam em mercados organizados e regulados para sua atuação.

É a B3 que hospeda a plataforma para registro da emissão e das negociações com os CBIOs, que encontram no mercado financeiro o seu ambiente de negociação por excelência, assim designado pelo legislador com o objetivo de conferir-lhes liquidez e facilidade de transação, refletindo no seu valor econômico e no seu impacto na política de redução de emissões.

Segundo, todo o regime instituído pela Lei nº 13.576/2017, mais precisamente a sistemática de emissão, escrituração e circulação dos CBIOs, está estruturado sob a premissa de tratar-se de ativo transacionado no mercado financeiro, não sendo desmesurado afirmar que o ambiente de negociação, nesses moldes, seja apto a atribuir ao ativo a natureza jurídica correspondente.

Assim se dá em nossa ordem jurídica, por exemplo, com o ouro ativo financeiro, que adquire tal qualidade, nos termos do artigo 1º da Lei nº 7.766/1989, “quando destinado ao mercado financeiro […] em operações realizadas com a interveniência de instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional, na forma e condições autorizadas pelo Banco Central do Brasil”.

Terceiro, a Resolução nº 4.593/2017 do Conselho Monetário Nacional determina, em seu artigo 2º, I, ‘c’, que “consideram-se ativos financeiros os títulos de crédito, direitos creditórios e outros instrumentos financeiros que sejam admitidos nas carteiras de ativos das instituições mencionadas no art. 1º”, ou seja, das instituições financeiras e demais instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil.

Quarto, a caracterização do CBIO como ativo financeiro já havia sido incorporada no direito positivo por via do Decreto nº 11.075/2022, ao tratar do crédito de carbono; gênero do qual o CBIO é espécie. De fato, referido diploma normativo determina, em seu artigo 2º, I que crédito de carbono é “ativo financeiro, ambiental, transferível e representativo de redução ou remoção de uma tonelada de dióxido de carbono equivalente, que tenha sido reconhecido e emitido como crédito no mercado voluntário ou regulado”.

A posterior revogação do Decreto nº 11.075/2022 pelo Decreto nº 11.550/2023 não tem o condão de alterar a constelação normativa que molda a natureza jurídica dos CBIOs no direito positivo brasileiro, inclusive porque tal revogação não foi acompanhada da positivação de uma caracterização jurídica dos CBIOs distinta daquela que constava originariamente do seu artigo 2º, I.

Quinto, diploma normativo relevante na regulamentação das transações com CBIOS segue atribuindo-lhe a natureza de ativo financeiro: o Anexo Normativo I à Resolução nº 175/2022 da Comissão de Valores Mobiliários, que dispõe sobre as regras específicas para os Fundos de Investimento Financeiro (FIF).

A norma determina expressamente, em seu artigo 2º, I, ‘c’, que “entende-se por ativos financeiros, por natureza ou equiparação, […] créditos de descarbonização — CBIO e créditos de carbono, desde que registrados em sistema de registro e de liquidação financeira de ativos autorizado pela CVM ou pelo Banco Central do Brasil ou negociados em mercado administrado por entidade administradora de mercado organizado autorizado pela CVM”.

Decisão da CVM

Por fim, a prática jurídico-institucional brasileira ratificou a natureza de ativo financeiro dos CBIOs, adotando e aplicando tal caracterização nas decisões, atos e transações que ocorrem sob sua alçada e competência.

Neste contexto, simbólico é o exemplo que vem da Comissão de Valores Mobiliários, que confirmou a caracterização do CBIO como ativo financeiro, e como tal elegível à composição da carteira de fundos de investimento, nos termos do artigo 2º, V da Instrução CVM nº 555/2014. [4]

Assim sendo, a natureza jurídica dos CBIOs é de ativo financeiro negociável em mercado [5].

As contribuições para o PIS e a Cofins projetam, como se sabe, em sua hipótese de incidência, uma determinada materialidade conforme se trate do regime cumulativo ou do não-cumulativo de apuração dos tributos referidos.

Sob o regime cumulativo, as contribuições para o PIS/Cofins incidem sobre o faturamento, correspondente à receita operacional da pessoa jurídica, decorrente da sua atividade principal, nos termos dos artigos 2º e 3º da Lei nº 9.718/98. Firmada tal premissa legal, tem-se que as receitas financeiras não se sujeitam, em princípio, à incidência do PIS/Cofins cumulativo.

Isso significa que as receitas decorrentes de transações com CBIOs sofrerão incidência do PIS/Cofins cumulativo apenas se o contribuinte tiver como objeto social a negociação de ativos financeiros, restrição da materialidade de ditas contribuições que é reiterada pelo artigo 788 da Instrução Normativa RFB nº 2.121/2022.

Sob o regime não-cumulativo, as contribuições para o PIS/Cofins incidem, nos termos do artigo 1º da Lei nº 10.637/2002 e do artigo 1º da Lei nº 10.833/2003, sobre o total das receitas auferidas pela pessoa jurídica, independentemente de sua denominação ou classificação contábil. Tal incidência ampla significa que as contribuições do PIS/Cofins, apuradas sob o regime não-cumulativo, incidem regularmente sobre as receitas decorrentes das transações com CBIOs, submetendo-as ao regime aplicável às receitas financeiras, do Decreto nº 8.426/2015.

Tributação de PIS/Cofins

Vale ressaltar, por fim, a natureza extrafiscal que deve envergar a tributação de tais instrumentos, diante de todo o arcabouço constitucional a tutelar o meio ambiente e assim impor o combate às emissões de carbono.

Pode-se afirmar, então, que a tributação do PIS/Cofins sob níveis inferiores de alíquotas aplicáveis às receitas financeiras, e especialmente o regime de tributação da renda à alíquota de 15% exclusiva na fonte, do artigo 15-A da Lei nº 13.576/2017, conferem alguma concretude ao mandamento do art. 225, §1º, VIII da Constituição, que impõe ao legislador “manter um regime fiscal favorecido para os biocombustíveis”, bem como àquele do artigo 170, VI da Constituição, ao determinar que a ordem econômica se paute, dentre outros, pelo princípio da “defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.

Nossas conclusões foram confirmadas recentemente pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, na apelação cível nº 5028277-80.2022.4.03.6100, em que é relator o desembargador federal Rubens Calixto [6].

No acórdão, foi reconhecida a natureza de ativo financeiro dos CBIOS, pois “se tratando de crédito escriturado e negociado sob os ditames da Lei 13.576/2017, do Decreto 9.888/2019 e da Portaria MME n. 56/2022 — e sob os auspícios da Resolução CVM 175 —, não há dúvida do caráter financeiro das receitas auferidas com a venda dos títulos representados pelos CBIOs”. O Tribunal concluiu, então, que os resultados obtidos via operações com os CBIOs devem ser rotulados como “receitas financeiras” e, consequentemente, submetem-se às alíquotas fixadas no artigo 1º do Decreto 8.426/2015.

Entendemos, portanto, cabível a propositura de ação judicial para assegurar o tratamento dos CBIOs como ativos financeiros, sujeitos ao PIS/Cofins não cumulativo, nos termos do Decreto 8.426/2015, à alíquota de 4,65% e não à alíquota usual da não-cumulatividade de 9,25%; bem como de compensar créditos decorrentes do pagamento a maior dessas contribuições nos últimos cinco anos.

Fonte: CONJUR

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