Contratação pelo poder público de empresas em recuperação judicial

Análise das jurisprudências sobre a viabilidade das licitações públicas com empresas em reestruturação

A contratação de empresas em processo de recuperação judicial pela Administração Pública é um tema que suscita intenso debate, situando-se na intersecção de dois pilares do ordenamento jurídico: de um lado, o dever de eficiência e a busca pela proposta mais vantajosa, conforme o regime de licitações; de outro, o princípio da preservação da empresa, consagrado no art. 47 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (Lei de Recuperação e Falência – LRF). Este princípio visa “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor”, protegendo a função social da empresa e a atividade econômica.

A controvérsia surge da aparente antinomia entre as exigências de qualificação econômico-financeira, como a “boa situação financeira do licitante” (conforme art. 69 da Lei nº 14.133/2021), e a própria natureza da recuperação judicial. Historicamente, o art. 31, inciso II, da Lei nº 8.666/1993 era interpretado por muitos como um impeditivo, ao exigir “certidão negativa de falência ou concordata”.

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) pacificou o entendimento de que a condição de recuperanda, por si só, não pode inabilitar uma empresa de participar de licitações. Em decisões paradigmáticas, como no Recurso Especial nº 1.826.299/CE, a Corte Superior firmou a tese de que a exigência de certidão negativa de recuperação judicial deve ser relativizada, pois tal vedação criaria um impedimento não previsto em lei, ferindo o princípio da legalidade estrita e da ampla competitividade. Na mesma linha, o Tribunal de Contas da União (TCU), por meio do Acórdão 1.201/2020-Plenário, admitiu a participação de empresas em recuperação judicial, condicionando-a à apresentação de uma certidão do juízo competente que ateste sua aptidão econômica e financeira para assumir as obrigações do contrato.

Dessa forma, a jurisprudência consolidou a tese de que a viabilidade da contratação não deve ser presumida nem descartada automaticamente, mas sim condicionada a uma análise criteriosa de um tripé de sustentação que, em conjunto, mitiga os riscos para a Administração e demonstra a probabilidade de adimplemento contratual: o suporte do juízo da recuperação, a comprovação de regularidade fiscal e a demonstração inequívoca da capacidade operacional.

A aplicação prática desse entendimento é vasta e pode ser observada em casos de grande repercussão. O exemplo mais emblemático é o do Grupo Oi S.A. Durante seu longo processo de recuperação judicial, a companhia não apenas manteve seus vultosos contratos de prestação de serviços de telecomunicações com inúmeros órgãos públicos, como também participou de novos certames. A continuidade desses contratos foi crucial para a viabilidade do plano de recuperação, ao mesmo tempo em que garantiu a manutenção de um serviço essencial para a Administração.

Da mesma forma, diversas construtoras de infraestrutura, muitas afetadas pela Operação Lava Jato, recorreram à recuperação judicial. Mesmo nesse cenário, continuaram a executar obras públicas e a participar de novas licitações, obtendo respaldo do Judiciário para garantir seu direito de contratação, desde que comprovada a capacidade técnica e operacional para a execução dos projetos.

Esses casos concretos demonstram que a decisão de contratar com uma empresa em recuperação judicial, quando bem fundamentada, se revela uma via de mão dupla: para a empresa, representa uma fonte vital de receita; para o Poder Público, assegura a continuidade de serviços e fomenta a economia.

Para que essa contratação seja segura, o primeiro pilar é o suporte do juízo da recuperação judicial. A aprovação do plano pelos credores (art. 58 da LRF) e a emissão de uma certidão de aptidão pelo magistrado funcionam como um selo de confiança. O segundo pilar é a comprovação de regularidade fiscal, demonstrada não pela quitação, mas pelo equacionamento dos débitos através de parcelamentos especiais (como os da Lei nº 13.043/2014) e a apresentação de uma Certidão Positiva com Efeitos de Negativa (CPD-EN).

O terceiro e mais pragmático pilar é a demonstração inequívoca da capacidade operacional. A empresa deve provar que possui os meios materiais e humanos para executar o objeto, e a Administração tem o dever de realizar diligências para aferir essa capacidade, conforme faculta o art. 64 da Lei nº 14.133/2021.

Conclui-se, portanto, que a contratação de uma empresa em recuperação judicial é juridicamente possível e, como demonstram os exemplos, uma realidade no mercado. A questão central para o gestor público desloca-se da simples permissão legal para uma criteriosa gestão de risco. A decisão exige uma postura diligente, que substitua a vedação sumária por uma análise fundamentada na chancela judicial, na regularidade fiscal e, crucialmente, na comprovada capacidade de execução. Ao agir assim, a Administração Pública equilibra de forma responsável o fomento à economia e a indispensável proteção ao interesse público.

Fonte: JOTA

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