Era para ser até 31/12/2020 o pagamento do saldo dos precatórios em atraso por estados e municípios, de acordo com o comando da Emenda Constitucional nº 94/2016. Não foi. Veio a EC nº 99/2017 e adiou aquele prazo para 31/12/2024. O tempo passou, a mora nos pagamentos continuava alta e novamente a expectativa de finalmente honrar os pagamentos dos precatórios se frustrou. Dessa vez, com a EC nº 109/2021, os prazos para pagamento dos precatórios que estivesse em mora em 15/3/2015 venceria em 31/12/2029. Passados mais quatro anos, o enredo se repete: a recente EC nº 136, de 9/9/2025, fruto da aprovação da PEC nº 66/2023, elimina o dever de estados e municípios pagarem suas dívida de precatórios até 31/12/2029. Agora a moratória foi mais drástica: sorrateiramente, um dos derradeiros artigos da EC nº 136/2025 (artigo 7º) eliminou o prazo para pagamento de precatórios em mora em 31/12/2029 e sequer fixou novo termo para pagamento de tais débitos. É o velho dito popular “devo não nego, pago quando puder”, em revigorada versão.
Afinal, de que adianta fixar prazo, se nunca chegam? Não se dando por satisfeito em apenas retirar prazos para eliminar o passivo com precatórios, a EC nº 136/2025 fixa um teto de despesas para pagamento por estados e municípios dos débitos com precatórios. Conforme o novo § 23, acrescido ao art.100 da Constituição, tais pagamentos estão limitados de 1% a 5% da receita corrente líquida anual [1]. Quanto maior o estoque de precatórios em mora, maior o percentual máximo (teto) da receita corrente líquida a ser consumida com o pagamento de tais débitos.
Este teto é ótimo para assegurar previsibilidade no pagamento de dívidas por estados e municípios. Afinal, pagamentos inesperados de altas faturas com precatórios comprometem a execução orçamentária e a regular prestação de serviços públicos, especialmente diante de orçamentos municipais e estaduais já estrangulados com despesas obrigatórias.
Contudo, fixar teto, sem definir um piso, ou seja, um valor mínimo que anualmente os estados e os municípios devem reservar de sua receita corrente líquida para pagamento de débitos de precatórios, é favorecer o poder público em prejuízo de seus credores. O estoque de dívidas com precatórios tem aumentado nos últimos anos, o que aponta a necessidade de compromissos mais firmes com reservas mínimas de receitas do orçamento destinadas ao pagamento destes débitos.
De acordo com dados oficiais do Tesouro Nacional [2], em 2017 somente a União devia R$ 29 bilhões em precatórios. Para estados e municípios a dívida consolidada era de R$ 101,4 bilhões. Em 2024, a dívida da União saltou para R$ 98,7 bilhões, enquanto a de estados e municípios, para R$ 187,6 bilhões.
Emenda estimula endividamento e compromete credibilidade
Sem prazo máximo e sem piso mínimo de reservas de receitas programadas para tais despesas, a EC n.136/25 sinaliza os incentivos errados, que acabam por estimular o aumento do endividamento com os precatórios. A mensagem que passa é de que vale a pena o Estado lesar direitos de servidores, aposentados, contribuintes, contratados e cidadãos e forçá-los a irem às barras dos tribunais em busca da tardia reparação. Mais uma derrota para quem amarga uma longa espera na fila para receber o que lhe é de direito, por decisão definitiva da Justiça
Chegar aos precatórios é vencer um lento e tortuoso processo judicial contra a Fazenda Pública, frequentemente longe de respeitar o fundamental direito à razoável duração do processo. E o pior: são processos que rotineiramente lidam com tacanhas violações de direitos incontroversos, que poderiam ser administrativamente solucionados. Contudo, desaguando no Judiciário, ajudam o poder público a encontrar recursos para outros projetos imediatistas, ao custo de ganhar tempo com o adiamento de despesas com direitos lesados. Isso retira a credibilidade tanto do Executivo quanto do Judiciário e deixa desesperançada a advocacia, pois o cidadão tem tardiamente o direito reconhecido, mas não o leva para casa!
Adiamento sem fim
Outro agravante para a insolúvel situação dos precatórios é não ser tema com apelo político. Políticos não disputam eleições prometendo pagar precatórios. Para cumprir as promessas eleitorais que fazem, acabam por sacrificá-los. Empurram a conta para a frente, para o próximo governo pagar. E o governo sucessor não quer despesas com o pagamento de dívidas que não fez. Ainda contam com a ajuda de emendas constitucionais, que sempre adiam prazos de liquidação do estoque de precatórios.
As proposições legislativas erram o alvo; atacam os efeitos da moléstia dos precatórios, não sua causa. Quer se suavizar os efeitos do endividamento com precatórios nos orçamentos e nas metas fiscais dos governos. Negligencia-se, porém, soluções para debelar suas causas. Afinal, o crescente volume de endividamento com precatórios evidencia o malogro das tentativas legislativas de reduzi-lo. É a tendência se os governos de hoje “continuarem a viver como seus pais”, e nada for feito de diferente.
O turning point, a virada de chave, é voltar-se para a essência do conceito de precatórios. As requisições precatórias remetem à ideia do verbo “precatar”, que significa acautelar(-se), prevenir(-se) [3]. Interditada pela CF/88 e pelo Código de Processo Civil a penhorabilidade dos bens e dinheiros do poder público, para evitar a paralisação ou descontinuidade na prestação dos serviços públicos, as ordens precatórias judiciárias emitidas até 1º de fevereiro (novo marco definido pela EC nº 136/25) obrigam os entes federados a acautelarem-se, incluindo nos seus orçamentos verbas necessárias para o pagamento dos precatórios até o final do exercício seguinte, como determina o §5º do artigo 100 da CF/88.
A solução buscada pelos precatórios é também prevenir-se. Como? Programando-se orçamentaria e financeiramente para pagá-lo até o final do exercício seguinte. Indo mais a fundo, o que se deve fazer – e não é suficientemente feito – é planejar. Assumir a responsabilidade fiscal de solidamente planejar os efeitos dos atuais e dos futuros precatórios no orçamento público. Afinal, há tempo de sobra para se conhecer e fazer um diagnóstico dos efeitos do contencioso judicial nas contas públicas até a emissão do precatório.
Em suma, é imperioso acautelar-se, prevenir-se com base em gestão de riscos dos processos judiciais contra a Fazenda Pública. Basicamente, avaliar e classificar o risco das ações judiciais, com base nos critérios de probabilidade de derrota judicial e seu impacto financeiro na dívida pública. Nenhuma novidade nisso. A LC nº 101/00, a Lei de Responsabilidade Fiscal, em seu artigo 4º, § 3º, estipula que a lei de diretrizes orçamentárias conterá Anexo de Riscos Fiscais, no qual deve constar a avaliação dos efeitos de passivos contingentes, como condenações judiciais, nas contas públicas, e quais providências a serem tomadas para minimizar os riscos.
Ações judiciais de alto risco de derrota para a Fazenda Pública devem ser lançadas no passivo contábil, para antecipadamente alertar a administração pública, quando da elaboração do orçamento, do provisionamento de verbas para o pagamento daquela dívida que é certa.
São providências fiscais responsáveis que podem ajudar a construir o planejamento financeiro sem o qual o endividamento com os precatórios se avolumará.
O adiamento sem fim do pagamento de precatórios é prenhe de argumentos de um quadro grave de inconstitucionalidades, que podem ser retratadas pela insegurança jurídica. Afinal, não há maior insegurança jurídica que a insegurança de nem depois de decisão judicial definitiva se desfrutar da reparação de direitos injustamente lesados! Uma grave insegurança no e do Estado Democrático de Direito.
A Receita Corrente Líquida, conforme descrito na LRF, é o somatório das receitas correntes, ou seja, receitas de impostos, taxas e contribuições de melhoria, de contribuições, patrimoniais, agropecuárias, industriais, de serviços, transferências correntes e outras receitas correntes do ente da Federação, deduzidas as repartições de receitas tributárias previstas na constituição e as contribuições dos servidores aos regimes de previdência.
Fonte: Conjur