O agronegócio ocupa posição central na economia brasileira e, ao mesmo tempo, é um dos setores mais expostos à volatilidade de preços, à sazonalidade produtiva e às tensões de crédito. Nesse cenário, a recuperação judicial vem sendo acionada por produtores rurais e, inclusive, por tradings agrícolas, com o objetivo de coordenar obrigações e preservar a atividade econômica. Para que esse objetivo não se converta em promessa vazia, é decisivo qualificar corretamente o que, numa trading de grãos, constitui o núcleo econômico indispensável à execução do plano.
O artigo 47 da Lei 11.101/05 orienta a preservação da empresa, da fonte produtora, do emprego e dos interesses dos credores de forma coletiva. Outrossim, o artigo 49, §3º, veda a retirada de bens de capital essenciais no stay period, enquanto o artigo 6º, §7º-A, confere competência exclusiva ao juízo da recuperação para suspender constrições que recaiam sobre ativos indispensáveis à atividade.
No caso dos estoques de grãos, a salvaguarda decorre da seguinte fundamentação: a conjugação do artigo 47 com a centralização dos atos constritivos no juízo universal, justamente para evitar que execuções isoladas esvaziem o ativo circulante essencial e inviabilizem o cumprimento do plano de soerguimento.
Em precedente, o Superior Tribunal de Justiça firmou que cabe exclusivamente ao juízo da recuperação avaliar atos constritivos que incidam sobre bens essenciais, inclusive quando se trate de créditos extraconcursais ou garantidos fiduciariamente [1]. Essa centralização não apenas resguarda a lógica do princípio par conditio creditorum, mas também impede que a tutela individual de um credor comprometa a finalidade coletiva do processo de soerguimento.
Precedentes
Nesse contexto, recentemente, o juiz de Direito Osvaldo Alves da Silva, da 4ª Vara Cível de Cascavel (PR), reconheceu a natureza essencial da safra de milho produzida por empresa em recuperação judicial. Ao fundamentar a decisão, o magistrado ressaltou que, embora os créditos extraconcursais não estejam sujeitos aos efeitos da recuperação, o artigo 6º, §7º-A, da Lei nº 11.101/05 confere ao juízo universal a competência para suspender constrições que atinjam bens de capital essenciais à continuidade da atividade empresarial.
Respaldado em precedente do STJ, concluiu que a safra de milho, por integrar diretamente o ciclo produtivo, deveria ser qualificada como bem essencial:
“No caso em apreço, é incontroverso que a atividade principal da requerente é o cultivo de milho e a comercialização de sementes, cereais, leguminosas, dentre outros, os quais constituem o objeto central da empresa. Trata-se, portanto, de insumo essencial e intrinsecamente vinculado à cadeia operacional da empresa, de modo que deve ser declarada a sua essencialidade, a fim de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor e preservar a empresa, sua função social e sua atividade econômica [2]“.
Nessa perspectiva, o TJ-PR, em caso envolvendo trading agrícola, concluiu que os grãos estocados não configuram meros bens de consumo, mas elementos essenciais da operação comercial e financeira, devendo o crédito ser discutido no juízo universal da recuperação judicial [3].
Por outro lado, o TJ-MT, em precedente paradigmático, declarou expressamente a essencialidade dos grãos e plantio como bens essenciais, vedando atos expropriatórios durante o período de suspensão. O desembargador Sebastião de Arruda Almeida consignou em seu voto:
“No que tange a manutenção da fonte produtora, dos empregos e dos interesses dos credores, como bem expõe o Agravante “sem o grão não há nova safra/safrinha, sem o grão não há recursos para pagar sequer o diesel utilizado na própria colheita ou novo plantio e, por consectário lógico, acarretaria o fim do ciclo produtivo e da atividade, levando os recuperandos à bancarrota”, são fatos que justificam a ponderação dos direitos da recuperanda e seus credores, pena de comprometimento da finalidade legal do aludido instituto recuperacional.
Nessa toada jurídica, aparenta que suprimir os grãos da recuperanda, que são resultado do processo produtivo, é impedir que esta exerça sua atividade empresarial de ponta-a ponta, valendo-se na integralidade do conceito de empresa que é, justamente o exercer ‘profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços’ (artigo 966 do Código Civil/2002). Ou seja, sem poder exercer atividade econômica e sua função social constitucional, que também se relacionam a capacidade da recuperanda em estar ativa no mercado, envolvendo compra e venda de bens, fere-se de plano a disposição do art. 47 da LRF” [4].
Conclusão
Portanto, a análise da essencialidade dos estoques de grãos em processos de recuperação judicial de tradings agrícolas evidencia que tais ativos não podem ser reduzidos à condição de simples mercadorias disponíveis para expropriação individual. Ao contrário, configuram-se como elementos estruturantes do ciclo produtivo e do próprio modelo de negócios do agronegócio, representando não apenas a fonte imediata de receita, mas também a base material para viabilizar safras futuras, assegurar o cumprimento de contratos de exportação e manter a engrenagem econômica da empresa em funcionamento.
Sob a ótica do artigo 47 da Lei nº 11.101/05, a proteção dos estoques de grãos nas recuperações judiciais de tradings agrícolas revela-se como medida indispensável à preservação da empresa e da função social da atividade, pois é a partir deles que se viabiliza a continuidade do ciclo produtivo e a satisfação coletiva dos credores, reforçando o papel do juízo universal para o equilíbrio necessário ao efetivo cumprimento do plano de recuperação.
Fonte: Conjur